Já ninguém se lembra quem foi o meu trisavô. É certo que tive bastantes,
como toda a gente, mesmo os bastardos e órfãos. Todos tiveram um trisavô.
Podia ter sido o Eça de Queirós ou o Lenine e nesse caso todos os membros
da família carregariam orgulhosamente o emblema ao peito. Mas não. No entanto,
ele existiu. Nasceu numa pequena aldeia do norte de Portugal em 1872. Oh,
quantas coisas importantes e decisivas não aconteceram nessa data. Não me
consta que ele tenha participado em alguma. Passou a infância e a juventude e
casou na freguesia onde nasceu, trabalhando a terra e criando numerosa prole,
como era costume da época.
Apenas uma data: 1929. Em 1929, no inverno, sabemos que pediu autorização
às autoridades competentes para viajar para o Brasil. Do passaporte que lhe foi
emitido consta a única fotografia que dele temos. Nela vemos um homem com 57
anos que está prestes a atravessar o atlântico num moderno navio a vapor. Esta
é, quiçá, a primeira viagem que faz na sua vida.
Apesar da pouca qualidade da foto,
vemos os cabelos brancos que despontam abundantes na sua cabeça. Com uma idade
que, à época, era já para fazer as continhas do caixão, o meu trisavô
desconhecido prepara-se para viajar para terra incógnita e enfrentar a
tormentosa e tropical urbe do Rio de Janeiro, ou perder-se nas imensas planuras
do sertão brasileiro.
Em 1929… Quantas coisas importantes já não aconteceram entre 1872 e 1929… O
rei D. Carlos sucedeu no trono ao seu pai – D. Luís, e após uns quantos
arremedos de indolência real comprovados pelos séculos, acaba assassinado em
plena baixa lisboeta, em 1908. A Monarquia está por um fio e ninguém parece
disposto a morrer por ela, excepto meia dúzia de jovens integralistas cheios de
testosterona e um tal de Paiva Couceiro. O futuro D. Manuel preferirá acabar os
seus dias em sossego no exílio dourado inglês a envolver-se em aventureirismos.
Muitos não lhe perdoam a covardia.
Em 1929, a Rússia é já uma federação popular de repúblicas desde 1917, data
em que Rasputine abandona o mundo de vez. A Guerra Civil entre brancos e
vermelhos já acabou há 7 anos e Trotski deu de frosques para o México, fugido à
tirania de Estaline.
Os grandes homens do século XIX são já quase todos apenas memória, em 1929,
e o mundo burguês vitoriano atolou-se e morreu na lama das trincheiras da
primeira guerra mundial.
O sonho de uma paz duradoura que tinha sido inaugurado com a Sociedade das
Nações encontra-se perigado pela emergência de movimentos fascistas. A crise de
1929 dá o golpe de misericórdia ao multilateralismo, e cada Estado volta os
olhos para o seu umbigo.
Entretanto, o meu trisavô faz também pela vida, procura sobreviver. Sabemos
que voltou a Portugal, mas ignoramos quando. Viveria ainda o tempo suficiente
para assistir a uma Segunda Grande Guerra e à ascensão ao poder do jovem
contabilista de Santa Comba Dão. Fernando Pessoa, bastante mais novo, faleceu já
em 1935, de cirrose.
Daí até aos anos 50 foi apenas num salto. Começa a Guerra Fria, mas quem
não tem televisão e mal conhece o cinema não dá muito por isso. No Portugal sem
pós- guerra desses anos, as batalhas são ainda pela sobrevivência e a fome é
ainda uma ameaça real. A tuberculose leva tantos como teria levado a guerra
civil no país vizinho.
O meu trisavô acaba os seus dias num lar, em 1960, um ano antes da Guerra
do Ultramar. Foi a enterrar num cemitério que não era o da sua terra natal e em
vala comum, ao que parece. E no entanto, quando o olho nos olhos da fotografia
que dele resta e reparo como fita corajosamente a objectiva com um orgulhoso
bigode oitocentista, o passado que já não existe apresenta-se-me vivo e
deformado pela imaginação para cair novamente no esquecimento.