terça-feira, 10 de dezembro de 2013

China - Um Toque de Pecado, de Jia Zhangke (2013). O país onde vivemos.




Um dos episódios mais marcantes do eterno romance de Miguel de Cervantes é aquele em que o valeroso fidalgo se defronta, por obra dos encantamentos (tão reais) que os invejosos mágicos da sua ventura lhe colocam no caminho, com o enigmático Cavaleiro dos Espelhos. Nos trilhos do encanto e do desencanto, esta personagem dirige-se a Quixote com a mesma linguagem, a do ofício da cavalaria andante, desafiando-o para um duelo, que o herói da história vence.

Na realidade (e que realidade será esta?), o Cavaleiro dos Espelhos nada tinha de enigmático. Tratava-se do seu quase vizinho - o Bacharel Sansão Carrasco -, que promete pôr cobro às “loucuras” de D. Quejada e fazê-lo regressar são e salvo a casa.

Não consta que Cervantes fosse senhor da palavra mimesis com toda a carga filosófica que esta tem na cultura ocidental, mas conhecia certamente o seu parente popular: a imitação. O Ser-Humano imita e imita-se na representação que faz de si e do mundo, pelo que suspeitamos que Sansão Carrasco se lançou ao caminho, menos para resgatar o nosso fidalgo do que por afã de realização própria. Estaria o Bacharel Carrasco sob influência da mesma lúcida loucura que os romances de cavalaria inspiraram em Quixote? Basta lembrar que a segunda parte da obra, da autoria de mesmo autor da primeira, saiu ensombrada (e graças) a uma segunda parte apócrifa, escrita por um tal de D. Alonso Fernández de Avellena, que resolveu sequenciar as aventuras do último reduto da cavalaria andante. Para não correr o risco de ser novamente plagiado, Cervantes “mata” Quixote nesta segunda parte. Na verdade, numa época em que a ideia de escrever para um grande público era ainda relativamente estranha, talvez a sequela do Quixote mais não fosse que uma longa carta de rancor a Avellena.

A história do Cavaleiro dos Espelhos, do Quixote apócrifo e do verdadeiro Quixote veio-me à memória com este filme, porque tal como o romance de Cervantes (no que todos temos de D. Quixote e de Sancho Pança), este filme é um espelho dos nossos actuais descontentamentos, que não são só actuais nem apenas nossos.

O que se espera de um filme sério sobre a China do século XXI? Que retrate a terrível condição existencial desse país imenso apanhado no joelho da história, onde se conjuga o pior de dois sistemas político-económicos? Sim, essa China está lá, mas (assustem-se), o país que se retrata na tela é o país onde todos vivemos. Claro que existem especificidades nacionais em todas as culturas sujeitas ao turbilhão de mudanças que as últimas décadas trouxeram, mas como será que o novo convive com o velho? Elimina-o? Substitui-o? A mestria deste filme mostra como o pior dos tempos modernos convive com os fantasmas tracionais. Diz no filme: «- Não é tempo de rezar aos Deuses»; «- Sim, mas eu rezo a fantasmas». Qual será a linha de montagem que não sonha com um exército de confucionistas conformados ao seu serviço? Diz-se ainda: «- A culpa é dos Deuses». O que farão então os homens?

A China que Zhangke retrata é violenta, mas a violência gráfica que aí jorra em banhos de sangue é também uma hipérbole e um simulacro da realidade, porque ao exagerá-la a diminui e desacredita. Por isso cria a necessária distância da realidade, sem a qual é impossível compreendê-la.

As quatro histórias que nos retrata o filme são as de quatro personagens em constante movimento e no limiar de algo catastrófico. Saltam de região em região como estrangeiros no próprio país; agridem, falsificam, matam, matam-se. A realidade é para eles um muro intransponível num mundo onde não podem existir pessoas ou, a quem quer existir, resta o suicídio pessoal e social, porque essa é a condenação de quem atravessa a barreira libertadora e fatal da transgressão. Mas esse suicídio pessoal é também uma morte colectiva, a que leva um certo caminho da “prosperidade”, simbolicamente representado em edifícios homogéneos carregados de estendais. Esse é o caminho da anulação da subjectividade, porque quando se parte o espelho e se mata D. Quixote, deixa de existir o Ser-Humano.