O que dizer sobre uma obra da qual tudo já foi dito
e escrito? Deu origem a incontáveis teatralizações, que ainda hoje pululam nos
palcos de todo o mundo. Inspirou e obteve de séculos de tradição literária um
sem número de glosas. Aquela que parece apenas uma obra satírica dos romances
de cavalaria da época (os best-sellers) e todo o seu cortejo de sandices e
tramas inverosímeis, é um tributo à condição humana. A loucura de D. Quixote
não o é num sentido patológico, nem a simplicidade de Pança (tornado cada vez
mais sábio à medida que o enredo avança) um estereótipo do povo ignorante,
ávido da fartura e da riqueza fácil. As viagens de Quixote são um grito
desesperado e anacrónico de um mundo mágico que desaparece; e se à extinção do
mundo mágico da cavalaria lhe sucede o prosaísmo da realidade, ainda que
aprendido à força da pancada, não deixa a sua Triste Figura (representada por
Lima de Freitas na edição da Relógio D´Água quase como uma linha ténue e difícil
de decifrar) de transparecer o desencanto de todas as coisas, e a magreza dos
seus membros o encanto da decadência no turbilhão da mudança.
Como, melhor que ninguém, disse António Gedeão:
“Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.
Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.”
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Ambos são necessários, portanto, o encanto e o
desencanto.