domingo, 19 de maio de 2013

Revisitar Diogo Alves, o Assassino do Aqueduto das Águas Livres



Esta história apenas faz sentido se for contada a partir do fim, que culmina com a morte de um homem por condenação legal, a 19 de Fevereiro de 1941. Após uma pequena consulta na wikipédia, percebemos que este útil instrumento da vida moderna privilegia os pormenores e despreza os grandes. Lê-se no painel de identificação da personalidade: Nome – Diogo Alves; Nascimento - 1810, Galiza, Espanha; Nacionalidade – português; crime – assassinato; Pena – enforcamento; Situação – morto. Admiro a capacidade e minúcia do autor desta página da WP, sem contudo deixar de ressalvar que Diogo Alves não era português, mas sim galego; não foi condenado apenas por homicídio, mas sim por homicídio, roubo e associação criminosa. A sua situação é, concordo, a de morto. A prova disso encontra-se no Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde a sua cabeça figura decepada num frasco cheio de formol, uma prenda do Dr. José Lourenço da Cruz Gomes ao estudo da nobre ciência da frenologia que então dava importantes passos (e quantas nobres ciências não descobriu o século XIX?).
À sua companheira chamavam-lhe “a Parreirinha”, uma tasqueira (um eufemismo da altura para prostituta, possivelmente) de Lisboa cheia de filhos de pais diferentes que se apaixonou pelo jovem galego. À boa maneira bíblica, diziam que esta lhe teria inspirado vários dos seus crimes.
Na sua última viagem conhecida, Diogo, juntamente com um seu comparsa da quadrilha da qual era líder, Martins, caminham para o cadafalso; uma multidão de curiosos apinha-se a para ver Diogo Alves, cuja ferocidade e audácia fizera tantas vítimas em Lisboa. Os jornais relatam-no na primeira página, e embora Diogo não saiba ler, pois é analfabeto, sente uma certa vaidade. Fazendo jus a esse merecido estatuto, tenta manter a postura e o ar digno enquanto caminha. Já o colega Martins encontra-se totalmente desfigurado, com o rosto contorcido pela angústia e pelo desespero. O povo aproxima-se. Não os insultam como seria de esperar. Nesse mesmo dia, talvez os jornais falem sobre outros seus colegas de profissão, embora de outras partes do país e com fama futura diversa: João Brandão (dos lados das beiras) e “o Remexido”, que segundo as crónicas da época pôs os algarves a ferro e fogo. Todos estes têm algo em comum: a pobreza. Um outro oitocentista viria a encontrar-se com este perfil: Zé do Telhado, que não fora ter agradado ao trágico Castelo Branco, a sua fama andasse tão perdida como a de Diogo Alves. Mas continuemos. Diogo Alves mantém a altivez, mas quando avista o cadafalso de madeira, a longa trave ainda a pingar da chuvada da noite anterior, tudo se confunde na cabeça do vilão, juntamente com o cansaço de três noites sem dormir. Em vão pediu à parreirinha que lhe arranjasse algum veneno, o que a pobre da mulher providenciou escondendo nas roupas que lhe levara à enxovia, mas os guardas não permitiram e Diogo teve mesmo que se apresentar na forca na plena juventude dos seus 31 anos. Não aguenta, desfalece, chora e berra de raiva.

Meses antes, Diogo juntara um grupo de rapazes rufias como ele. Alguns deles também eram jovens galegos, que tal como Diogo tinham sido enviados pelos pais para Lisboa mal a sua condição física permitira pegar num barril para servir de aguadeiros. Tal como eles, Diogo veio da Galiza natal em busca do El Dorado do sul, mas na capital portuguesa encontrou apenas trabalho duro e porrada dos capatazes. A escravatura fora abolida havia pouco tempo, e a importante função económica dilacerada pela libertação dos escravos escravizou toda uma nova massa de mão-de-obra livre, branca e vinda das regiões rurais pobres. Como muitos, fartou-se de correr a cidade de lés-a-lés com o barril de 50 litros de água às costas, das tiranias dos patrões, das brigas nos chafarizes da cidade; empregou-se como boleeiro e ganhou fama de feroz; despediu-se e empregou-se como serviçal em casas de senhores, mas embora fosse analfabeto, não se sentia bem em ser tratado com mais desprezo do que um cavalo; pensou mudar de carreira. Arranjou uma chave falsa da porta de um dos pórticos do aqueduto das águas livres, que tantas vezes correu de lés a lés nos seus tempos de aguadeiro, e infiltrou-se na galeria, à espera, à espera… Passa a primeira vítima, uma moça dos seus vinte anos que vem da zona saloia para Lisboa com umas hortaliças à cabeça. Diogo sai, surpreende-a e gela-lhe o coração; arranca-lhe o cordão de ouro do pescoço e ela dá-lhe todas a moedas que consegue descoser da saia. Diogo pega no dinheiro, ergue-a com o seu forte braço direito de aguadeiro e lança-a do arco mais alto do aqueduto. Em poucos dias uma série de cadáveres surgem no local correspondente, esfrangalhados das quedas, e embora as autoridades andassem bastante ocupadas em perseguir detratores setembristas que inflamavam as páginas dos jornais, demoraram apenas dois anos a desconfiar que o caso não tratava de uma mera vaga de suicídios, ainda por cima todos no mesmo local. Fechou-se a passagem e montou-se uma caça ao homem. Entretanto, Diogo tivera um azar. Por norma, ameaçava as vítimas com uma faca, mas um dos ameaçados tinha uma pequena pistola, e Diogo não teve mais remédio do que se pôr a correr. Este homem viria a identifica-lo mais tarde, o que facilitou a imputação dos crimes.
Fechada a passagem, Diogo muda de estratégia e começa os assaltos às moradias dos ricos, com a quadrilha. Raramente roubava sem matar, disseram os seus companheiros. Era verdade. Quando assaltava um rico não lhe parecia estar a cometer nenhum crime, senão a remendar um mal em que divina providência falhara.

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