quarta-feira, 1 de maio de 2013

Os Dissabores de Clamídia



Clamídia anda de mal com a vida. Durante anos a fio trabalhou com fervor religioso naquela empresa, tendo por marido nunca conhecido o seu computador orgulhosamente chamado de Jeshua. Não se poupou a esforços nem olhou a horários e não, não foi para encher o olho a alguém. Fê-lo por amor à arte. Os seus esforços não foram de todo inglórios, já que a certa altura quase que foi promovida a coordenadora. Chegou mesmo a ver o seu endereço de email colocado na mailbox da coordenação, mas foi sol de pouca dura. Quando a revogação da investidura de poderes que lhe havia sido feita se concretizou, aceitou-a com resignação, o mesmo é dizer que sem um único sinal de ressentimento. Não tentou boicotar o trabalho, como fazem muitos maldosos descontentes. Não ultimou sentenças de morte aos seus superiores os quais, contra todo o bom senso, lhe impuseram aquele imobilismo da carreira. Antes trabalhou com redobrado fervor, colocando na ponta dos dedos e na organização da sua secretária os requintes de altar.
A vida sabia-lhe, até então, com o agradável peso da rotina. O lápis era retirado e colocado no lugar, o senhor do quiosque da esquina e o seu bigode monárquico, o micro-ondas da cozinha, o gatinho que, afável, a aguarda todos os dias após mais uma dura jornada de trabalho. É assim que devem ser as coisas, quando se tem uma vida tranquila e se pode envelhecer com os dias.
Mas nos tempos que correm o sossego anda por um preço do caraças. Vá-se lá saber, que diabo, chegaram uns estrangeiros ao Governo que querem tudo a toque de caixa. Em menos de um credo uma avalanche de novas regras e imposições precipitou-se sobre o seu escritório de Clamídia que, na ordem da cadeia alimentar, irá pagar as favas. Como se não bastasse, não caiu no goto da nova coordenadora, que com um prazer quase sádico atormenta a nossa pobre administrativa com aquelas ninharias que só as mulheres frustradas imaginam, e com sofisticações de tortura tais e tantas que nem ao mais abominável dos sicários lembrariam. É uma injustiça.
Por exemplo: com o passar dos anos, Clamídia apanhou o hábito de chegar todos os dias trinta minutos após a abertura do horário de expediente. Não que houvesse qualquer problema com isso, já que Clamídia compensava perfeitamente essa falha, internando-se no escritório até já muito depois de todos os seus colegas abanarem os seus postos de trabalho. Mas a malvada da coordenadora, com os seus nervosos olhos de boi e o seu faro de cão danado, após leves admoestações de quem modera o poder para assim o tornar ainda mais absoluto, fez com que Clamídia tivesse que acertar o seu ciclo biológico para entrar às nove horas em ponto. Foi uma maldade que se lhe fez, porque desde então as sua olheiras cavaram-se-lhe ainda mais fundas e negras na órbita dos olhos. Será que até o singelo prazer de ver a novela à noite lhe querem negar? A ela, que tão poucos tem?
Como se não bastasse e como um mal nunca vem só, ultimamente, algum engraçado resolveu trocar-lhe a ordem dos objectos em cima da sua secretária. Esse malvado, até agora anónimo, tem feito toda a sorte de patifarias, como sejam esconder-lhe a afia, trocar-lhe o lápis de lugar, roubar-lhe a caneta de tinta azul de filtro e colocar no lugar desta uma reles caneta de esfera. Coisas como estas têm acontecido com certa frequência e, como esperado pelo autor destes atentados, Clamídia, quando se apercebe da desordenação reinante, desordenam-se-lhe também os nervos, apertando-lhe a bexiga (que como sabemos, é uma inimiga de quem pretende rentabilizar o tempo ao máximo) provocando-lhe um crónico rubor de faces. Então é vê-la, quando entra de manhã no escritório e repara no assomo da cabeça da coordenadora encriptada na sua guarita como um macaco, como se lhe afogueiam as faces como se recebesse uma injecção de sangue. Então, durante aproximadamente duas horas ninguém lhe ouve o pio, excepto quando o telefone toca:
- Estou sim? Sim, sim. O meu nome? Clamídia? Não, não é Clamínia, é CLA-MÍ-DI-A. Sim, com o M.
Este tipo de confusões, que muito a afligem, são também mais frequentes do que seria desejável. Chamaram-lhe já “Clotilde”, “Glamínia”, “Carminha” e outros barbarismos. Quando alguém mais arguto lhe pergunta o que quer dizer o seu nome, responde prontamente que é o nome de uma senhora austro-húngara. Foi este o primeiro resultado do Google, quando certa vez foi confrontada pela pergunta. Questionou os seus pais da razão de tão estranho nome, não tendo obtido qualquer resposta satisfatória. A sua mãe limitou-se a responder que não sabia, que tinha sido o pai a escolher. Certo malandrou disse-lhe um dia que era o nome de uma doença do amor, vulgo venérea, e que todas as doenças venéreas têm nomes femininos. E porque será? Clamídia amuou e ficou sem lhe falar precisamente durante uma semana inteira.
Tudo isto para chegar ao ponto a que havíamos chegado anteriormente, isto é, que o sossego anda por  um preço do caraças. E as razões pelas quais Clamídia se sente mal consigo própria e com o mundo são de ordem humana.
Mas caramba, parte-se-nos o coração e torna-se insuportável contemplar a sua disforme maça corporal servil, coberta pela roupa mil vezes remendada, o casaco de malha de um roxo esbatido já merecedor de condecorações e detentor de vida própria. Este ocupa orgulhosamente o lugar da sua portadora, pendurado na cadeira nas semanas de férias, assinalando simbolicamente a omnipresença da dona no posto de trabalho.
Por tudo isto chegámos a este pregão em uníssono: por favor, deixem as pessoas em paz. Parem de chatear. Acabem com o ritmo vertiginoso do mundo. Acabem com a velocidade frenética dos dias e devolvam a paz aos espíritos.
Tenho dito.

Ass: Porfírio da Silva, administrativo de terceira.

2 comentários:

  1. Pobre Clamídia. Era lenta, mas fervorosa e tinha amor à camisola...
    Lembra um bocado os retratos (antigos) de alguns funcionário públicos. Muitos havia que sofriam de DOP (distúrbio obsessivo-compulsivo), sabia, caro Colima?

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  2. Não sabia, Caro Post-It... Prefiro manter a coisa longe da medicina.

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