Clamídia anda de mal com a vida. Durante anos a fio
trabalhou com fervor religioso naquela empresa, tendo por marido nunca conhecido
o seu computador orgulhosamente chamado de Jeshua.
Não se poupou a esforços nem olhou a horários e não, não foi para encher o
olho a alguém. Fê-lo por amor à arte. Os seus esforços não foram de todo
inglórios, já que a certa altura quase que foi promovida a coordenadora. Chegou
mesmo a ver o seu endereço de email colocado na mailbox da coordenação, mas foi
sol de pouca dura. Quando a revogação da investidura de poderes que lhe havia
sido feita se concretizou, aceitou-a com resignação, o mesmo é dizer que sem um
único sinal de ressentimento. Não tentou boicotar o trabalho, como fazem muitos
maldosos descontentes. Não ultimou sentenças de morte aos seus superiores os
quais, contra todo o bom senso, lhe impuseram aquele imobilismo da carreira.
Antes trabalhou com redobrado fervor, colocando na ponta dos dedos e na
organização da sua secretária os requintes de altar.
A vida sabia-lhe, até então, com o agradável peso da
rotina. O lápis era retirado e colocado no lugar, o senhor do quiosque da
esquina e o seu bigode monárquico, o micro-ondas da cozinha, o gatinho que,
afável, a aguarda todos os dias após mais uma dura jornada de trabalho. É assim
que devem ser as coisas, quando se tem uma vida tranquila e se pode envelhecer com
os dias.
Mas nos tempos que correm o sossego anda por um
preço do caraças. Vá-se lá saber, que diabo, chegaram uns estrangeiros ao
Governo que querem tudo a toque de caixa. Em menos de um credo uma avalanche de
novas regras e imposições precipitou-se sobre o seu escritório de Clamídia que,
na ordem da cadeia alimentar, irá pagar as favas. Como se não bastasse, não
caiu no goto da nova coordenadora, que com um prazer quase sádico atormenta a
nossa pobre administrativa com aquelas ninharias que só as mulheres frustradas
imaginam, e com sofisticações de tortura tais e tantas que nem ao mais abominável
dos sicários lembrariam. É uma injustiça.
Por exemplo: com o passar dos anos, Clamídia apanhou
o hábito de chegar todos os dias trinta minutos após a abertura do horário de
expediente. Não que houvesse qualquer problema com isso, já que Clamídia
compensava perfeitamente essa falha, internando-se no escritório até já muito
depois de todos os seus colegas abanarem os seus postos de trabalho. Mas a
malvada da coordenadora, com os seus nervosos olhos de boi e o seu faro de cão
danado, após leves admoestações de quem modera o poder para assim o tornar
ainda mais absoluto, fez com que Clamídia tivesse que acertar o seu ciclo
biológico para entrar às nove horas em ponto. Foi uma maldade que se lhe fez,
porque desde então as sua olheiras cavaram-se-lhe ainda mais fundas e negras na
órbita dos olhos. Será que até o singelo prazer de ver a novela à noite lhe
querem negar? A ela, que tão poucos tem?
Como se não bastasse e como um mal nunca vem só,
ultimamente, algum engraçado resolveu trocar-lhe a ordem dos objectos em cima
da sua secretária. Esse malvado, até agora anónimo, tem feito toda a sorte de
patifarias, como sejam esconder-lhe a afia, trocar-lhe o lápis de lugar,
roubar-lhe a caneta de tinta azul de filtro e colocar no lugar desta uma reles
caneta de esfera. Coisas como estas têm acontecido com certa frequência e, como
esperado pelo autor destes atentados, Clamídia, quando se apercebe da
desordenação reinante, desordenam-se-lhe também os nervos, apertando-lhe a
bexiga (que como sabemos, é uma inimiga de quem pretende rentabilizar o tempo
ao máximo) provocando-lhe um crónico rubor de faces. Então é vê-la, quando entra
de manhã no escritório e repara no assomo da cabeça da coordenadora encriptada
na sua guarita como um macaco, como se lhe afogueiam as faces como se recebesse
uma injecção de sangue. Então, durante aproximadamente duas horas ninguém lhe
ouve o pio, excepto quando o telefone toca:
- Estou sim? Sim, sim. O meu nome? Clamídia? Não,
não é Clamínia, é CLA-MÍ-DI-A. Sim, com o M.
Este tipo de confusões, que muito a afligem, são
também mais frequentes do que seria desejável. Chamaram-lhe já “Clotilde”, “Glamínia”,
“Carminha” e outros barbarismos. Quando alguém mais arguto lhe pergunta o que
quer dizer o seu nome, responde prontamente que é o nome de uma senhora
austro-húngara. Foi este o primeiro resultado do Google, quando certa vez foi
confrontada pela pergunta. Questionou os seus pais da razão de tão estranho
nome, não tendo obtido qualquer resposta satisfatória. A sua mãe limitou-se a
responder que não sabia, que tinha sido o pai a escolher. Certo malandrou
disse-lhe um dia que era o nome de uma doença do amor, vulgo venérea, e que
todas as doenças venéreas têm nomes femininos. E porque será? Clamídia amuou e
ficou sem lhe falar precisamente durante uma semana inteira.
Tudo isto para chegar ao ponto a que havíamos
chegado anteriormente, isto é, que o sossego anda por um preço do caraças. E as razões pelas quais
Clamídia se sente mal consigo própria e com o mundo são de ordem humana.
Mas caramba, parte-se-nos o coração e torna-se insuportável
contemplar a sua disforme maça corporal servil, coberta pela roupa mil vezes
remendada, o casaco de malha de um roxo esbatido já merecedor de condecorações
e detentor de vida própria. Este ocupa orgulhosamente o lugar da sua portadora,
pendurado na cadeira nas semanas de férias, assinalando simbolicamente a omnipresença
da dona no posto de trabalho.
Por tudo isto chegámos a este pregão em uníssono:
por favor, deixem as pessoas em paz. Parem de chatear. Acabem com o ritmo
vertiginoso do mundo. Acabem com a velocidade frenética dos dias e devolvam a
paz aos espíritos.
Tenho dito.
Ass: Porfírio da Silva, administrativo de terceira.
Pobre Clamídia. Era lenta, mas fervorosa e tinha amor à camisola...
ResponderEliminarLembra um bocado os retratos (antigos) de alguns funcionário públicos. Muitos havia que sofriam de DOP (distúrbio obsessivo-compulsivo), sabia, caro Colima?
Não sabia, Caro Post-It... Prefiro manter a coisa longe da medicina.
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