quarta-feira, 29 de maio de 2013

Algo sobre Gravatas Vermelhas (Something About Red Ties)



Como o leitor facilmente compreenderá, o título do texto que dá corpo aos estranhos acontecimentos a relatar soa muito bem inglês; pois na verdade, estes estranhos acontecimentos poder-se-iam verificar em qualquer lugar, mas o autor viveu-os precisamente aqui, no sagrado solo português, um pedaço de paz no conturbado século XXI.

Desloquei-me a uma cidade da província portuguesa com um objetivo que, por delicadeza, revelarei daqui a pouco. O que interessa é que me desloquei a essa ilustre cidade, conhecida pelos bons vinhos e boa mesa. Não foi difícil descobrir o centro da cidade. Limitei-me a seguir o mapa mental que tenho para qualquer pequena cidade portuguesa: entrei na rotunda do continente, virei por uma ravina acima até chegar ao multibanco, logo ao lado do café central; do outro lado via-se o edifício da Câmara Municipal, de uma imponência modesta… A propósito, foi chegado a este lugar que vi o primeiro ser humano - era uma velhinha; depois três meninas bonitas apressadas em direção à Câmara, envergando uma espécie de uniforme e um lenço vermelho; depois três jovens rapazes de fato escuro e gravata vermelha. Afinal ainda existem jovens nas pequenas cidades portuguesas do interior. Dito isto, revelo o meu segredo – sou um indivíduo jovem e quero viver no interior. Quero ser reconhecido nas ruas e nos cafés e paz e sossego. Por isso fui à formosa cidade de P… fazer um exame para conseguir um emprego daqueles que já não há. À porta do local do exame encontravam-se mais dois ou três candidatos, todos carregados de livros e códigos. À medida que o tempo passava, foram chegando mais candidatos e mais, mais livros e códigos. Quando finalmente chega a hora do exame, e já sentado na secretária para concretizar, constato que sou o único que não tem livros e códigos em cima da mesa. Desconfiei. Uma senhora principiou a verificar a secretárias e perguntou-me: «-A sua legislação?», «-Não tenho», respondi. A senhora abriu os lábios num belo sorriso, graças ao qual me mostrou uns dentes afiados e a gengiva vermelha. Fez sinal à colega e sussurrou «-Não tem legislação». Compreendi a delicadeza da minha situação, mas resolvi continuar em prova com um estoicismo romano. Chegou um senhor baixinho e moreno, de bochechinhas rosadas, olhos azuis pequeninos e gravata vermelha. Verificou as secretárias e, chegado a mim, perguntou pela legislação. «-Não tenho». «-Não tem?!». Olhou com arzinho de zomba para as colegas e estas acenaram-lhe também com um risinho fino. Subitamente, o senhor ganhou um ar grave e perguntou: «- Não me diga que é daqueles que sabe a legislação toda de cor? Olhe que eu tinha colegas na faculdade que eram assim!». «-Não; apenas não sabia que era para trazer. Não dizia nada no anúncio a esse respeito.». «-Como é que se faz uma prova de direito sem legislação? Não se faz, não é?»; «-É?»; «É!». Tinha adivinhado bondade naqueles olhos, e como não me enganasse, o senhor fez um apelo aos presentes que me emprestassem, caso precisasse… Continuou a verificar as secretárias e descobriu um código do colega do lado todo cabulado. «Mas que é isto?!», disse indignado. «Isto não são remissões, são textos inteiros! Dê-me lá uma borracha para apagar isto senão tenho que anular tudo!» Continuei a minha prova com confiança, com respostas tão vagas e imprecisas que delas poderíamos extrair todo o universo. A dada altura, pedi o código ao colega, abri uma página ao calhas e lá estava uma transcrição inteira de um qualquer manual de direito, atribuído a um tal Dr. Miranda Portugal. Terminei, e quando me preparava para entregar a prova ao senhor de olhinhos azuis e gravata vermelha, este disse-me com ar sentido: «Admirei muito o seu gesto. O senhor, hoje, demonstrou carácter!». Agradeci o fui procurar um restaurante para almoçar. Encontrei a minha companheira suspensa de ansiedade, e quando lhe contei o sucedido manifestou-se com justiça.

Descobri um, muito discreto, chamado “A Pérola da Cozinha”. Entrei sem cerimónias e deparei-me logo na entrada com um grupo grande de homens com gravata vermelha sentados a almoçar. De entre todos, um senhor com ar distinto e cabelos brancos destacava-se, até porque quando falava todos se calavam. Dizia: «- O problema está na oferta! Temos que ver a coisa do lado da oferta. Seleccionar para obter melhor procura. Assim fixaremos mais pessoas». Com pouco esforço, percebi que aquela amena cavaqueira era uma reunião importante onde se definia o futuro da autarquia. Os senhores falavam com a preocupação de quem estava abandono; de últimos sobreviventes após um holocausto. «-Vê aquele senhor alto de gravata vermelha?», disse-me o empregado (que usava T-Shirt vermelha). «-É o Senhor Presidente da Câmara… e aqueles senhores são vereadores.». Levantei-me para ir à casa de banho, e quando voltei vi que a minha companheira abafava um choro surdo. Só então reparei que trazia um lenço vermelho ao pescoço.
Saímos e procuramos o carro para voltar. Quando o encontrámos, um senhor de cara vermelha e com uma máquina na mão parecia estar a trabalhar. Abri a porta do carro e o senhor perguntou-me: «- Esta viatura é sua?»; «-Sim»; «-Já ia autuar…”. Verifiquei o título do parquímetro. Passavam dez minutos do limite e era o único estacionado em todo o parque.

Dei meia-volta, ainda confuso por toda esta sincronia cromática em apenas uma manhã.

Cheguei à rotunda do Continente e vi no outdoor um senhor de ar respeitável, de faixa vermelha envergada, com o sorriso afável que dizia «Volte Sempre!». Parecia dizer-me adeus.

domingo, 19 de maio de 2013

Revisitar Diogo Alves, o Assassino do Aqueduto das Águas Livres



Esta história apenas faz sentido se for contada a partir do fim, que culmina com a morte de um homem por condenação legal, a 19 de Fevereiro de 1941. Após uma pequena consulta na wikipédia, percebemos que este útil instrumento da vida moderna privilegia os pormenores e despreza os grandes. Lê-se no painel de identificação da personalidade: Nome – Diogo Alves; Nascimento - 1810, Galiza, Espanha; Nacionalidade – português; crime – assassinato; Pena – enforcamento; Situação – morto. Admiro a capacidade e minúcia do autor desta página da WP, sem contudo deixar de ressalvar que Diogo Alves não era português, mas sim galego; não foi condenado apenas por homicídio, mas sim por homicídio, roubo e associação criminosa. A sua situação é, concordo, a de morto. A prova disso encontra-se no Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde a sua cabeça figura decepada num frasco cheio de formol, uma prenda do Dr. José Lourenço da Cruz Gomes ao estudo da nobre ciência da frenologia que então dava importantes passos (e quantas nobres ciências não descobriu o século XIX?).
À sua companheira chamavam-lhe “a Parreirinha”, uma tasqueira (um eufemismo da altura para prostituta, possivelmente) de Lisboa cheia de filhos de pais diferentes que se apaixonou pelo jovem galego. À boa maneira bíblica, diziam que esta lhe teria inspirado vários dos seus crimes.
Na sua última viagem conhecida, Diogo, juntamente com um seu comparsa da quadrilha da qual era líder, Martins, caminham para o cadafalso; uma multidão de curiosos apinha-se a para ver Diogo Alves, cuja ferocidade e audácia fizera tantas vítimas em Lisboa. Os jornais relatam-no na primeira página, e embora Diogo não saiba ler, pois é analfabeto, sente uma certa vaidade. Fazendo jus a esse merecido estatuto, tenta manter a postura e o ar digno enquanto caminha. Já o colega Martins encontra-se totalmente desfigurado, com o rosto contorcido pela angústia e pelo desespero. O povo aproxima-se. Não os insultam como seria de esperar. Nesse mesmo dia, talvez os jornais falem sobre outros seus colegas de profissão, embora de outras partes do país e com fama futura diversa: João Brandão (dos lados das beiras) e “o Remexido”, que segundo as crónicas da época pôs os algarves a ferro e fogo. Todos estes têm algo em comum: a pobreza. Um outro oitocentista viria a encontrar-se com este perfil: Zé do Telhado, que não fora ter agradado ao trágico Castelo Branco, a sua fama andasse tão perdida como a de Diogo Alves. Mas continuemos. Diogo Alves mantém a altivez, mas quando avista o cadafalso de madeira, a longa trave ainda a pingar da chuvada da noite anterior, tudo se confunde na cabeça do vilão, juntamente com o cansaço de três noites sem dormir. Em vão pediu à parreirinha que lhe arranjasse algum veneno, o que a pobre da mulher providenciou escondendo nas roupas que lhe levara à enxovia, mas os guardas não permitiram e Diogo teve mesmo que se apresentar na forca na plena juventude dos seus 31 anos. Não aguenta, desfalece, chora e berra de raiva.

Meses antes, Diogo juntara um grupo de rapazes rufias como ele. Alguns deles também eram jovens galegos, que tal como Diogo tinham sido enviados pelos pais para Lisboa mal a sua condição física permitira pegar num barril para servir de aguadeiros. Tal como eles, Diogo veio da Galiza natal em busca do El Dorado do sul, mas na capital portuguesa encontrou apenas trabalho duro e porrada dos capatazes. A escravatura fora abolida havia pouco tempo, e a importante função económica dilacerada pela libertação dos escravos escravizou toda uma nova massa de mão-de-obra livre, branca e vinda das regiões rurais pobres. Como muitos, fartou-se de correr a cidade de lés-a-lés com o barril de 50 litros de água às costas, das tiranias dos patrões, das brigas nos chafarizes da cidade; empregou-se como boleeiro e ganhou fama de feroz; despediu-se e empregou-se como serviçal em casas de senhores, mas embora fosse analfabeto, não se sentia bem em ser tratado com mais desprezo do que um cavalo; pensou mudar de carreira. Arranjou uma chave falsa da porta de um dos pórticos do aqueduto das águas livres, que tantas vezes correu de lés a lés nos seus tempos de aguadeiro, e infiltrou-se na galeria, à espera, à espera… Passa a primeira vítima, uma moça dos seus vinte anos que vem da zona saloia para Lisboa com umas hortaliças à cabeça. Diogo sai, surpreende-a e gela-lhe o coração; arranca-lhe o cordão de ouro do pescoço e ela dá-lhe todas a moedas que consegue descoser da saia. Diogo pega no dinheiro, ergue-a com o seu forte braço direito de aguadeiro e lança-a do arco mais alto do aqueduto. Em poucos dias uma série de cadáveres surgem no local correspondente, esfrangalhados das quedas, e embora as autoridades andassem bastante ocupadas em perseguir detratores setembristas que inflamavam as páginas dos jornais, demoraram apenas dois anos a desconfiar que o caso não tratava de uma mera vaga de suicídios, ainda por cima todos no mesmo local. Fechou-se a passagem e montou-se uma caça ao homem. Entretanto, Diogo tivera um azar. Por norma, ameaçava as vítimas com uma faca, mas um dos ameaçados tinha uma pequena pistola, e Diogo não teve mais remédio do que se pôr a correr. Este homem viria a identifica-lo mais tarde, o que facilitou a imputação dos crimes.
Fechada a passagem, Diogo muda de estratégia e começa os assaltos às moradias dos ricos, com a quadrilha. Raramente roubava sem matar, disseram os seus companheiros. Era verdade. Quando assaltava um rico não lhe parecia estar a cometer nenhum crime, senão a remendar um mal em que divina providência falhara.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Os Dissabores de Clamídia



Clamídia anda de mal com a vida. Durante anos a fio trabalhou com fervor religioso naquela empresa, tendo por marido nunca conhecido o seu computador orgulhosamente chamado de Jeshua. Não se poupou a esforços nem olhou a horários e não, não foi para encher o olho a alguém. Fê-lo por amor à arte. Os seus esforços não foram de todo inglórios, já que a certa altura quase que foi promovida a coordenadora. Chegou mesmo a ver o seu endereço de email colocado na mailbox da coordenação, mas foi sol de pouca dura. Quando a revogação da investidura de poderes que lhe havia sido feita se concretizou, aceitou-a com resignação, o mesmo é dizer que sem um único sinal de ressentimento. Não tentou boicotar o trabalho, como fazem muitos maldosos descontentes. Não ultimou sentenças de morte aos seus superiores os quais, contra todo o bom senso, lhe impuseram aquele imobilismo da carreira. Antes trabalhou com redobrado fervor, colocando na ponta dos dedos e na organização da sua secretária os requintes de altar.
A vida sabia-lhe, até então, com o agradável peso da rotina. O lápis era retirado e colocado no lugar, o senhor do quiosque da esquina e o seu bigode monárquico, o micro-ondas da cozinha, o gatinho que, afável, a aguarda todos os dias após mais uma dura jornada de trabalho. É assim que devem ser as coisas, quando se tem uma vida tranquila e se pode envelhecer com os dias.
Mas nos tempos que correm o sossego anda por um preço do caraças. Vá-se lá saber, que diabo, chegaram uns estrangeiros ao Governo que querem tudo a toque de caixa. Em menos de um credo uma avalanche de novas regras e imposições precipitou-se sobre o seu escritório de Clamídia que, na ordem da cadeia alimentar, irá pagar as favas. Como se não bastasse, não caiu no goto da nova coordenadora, que com um prazer quase sádico atormenta a nossa pobre administrativa com aquelas ninharias que só as mulheres frustradas imaginam, e com sofisticações de tortura tais e tantas que nem ao mais abominável dos sicários lembrariam. É uma injustiça.
Por exemplo: com o passar dos anos, Clamídia apanhou o hábito de chegar todos os dias trinta minutos após a abertura do horário de expediente. Não que houvesse qualquer problema com isso, já que Clamídia compensava perfeitamente essa falha, internando-se no escritório até já muito depois de todos os seus colegas abanarem os seus postos de trabalho. Mas a malvada da coordenadora, com os seus nervosos olhos de boi e o seu faro de cão danado, após leves admoestações de quem modera o poder para assim o tornar ainda mais absoluto, fez com que Clamídia tivesse que acertar o seu ciclo biológico para entrar às nove horas em ponto. Foi uma maldade que se lhe fez, porque desde então as sua olheiras cavaram-se-lhe ainda mais fundas e negras na órbita dos olhos. Será que até o singelo prazer de ver a novela à noite lhe querem negar? A ela, que tão poucos tem?
Como se não bastasse e como um mal nunca vem só, ultimamente, algum engraçado resolveu trocar-lhe a ordem dos objectos em cima da sua secretária. Esse malvado, até agora anónimo, tem feito toda a sorte de patifarias, como sejam esconder-lhe a afia, trocar-lhe o lápis de lugar, roubar-lhe a caneta de tinta azul de filtro e colocar no lugar desta uma reles caneta de esfera. Coisas como estas têm acontecido com certa frequência e, como esperado pelo autor destes atentados, Clamídia, quando se apercebe da desordenação reinante, desordenam-se-lhe também os nervos, apertando-lhe a bexiga (que como sabemos, é uma inimiga de quem pretende rentabilizar o tempo ao máximo) provocando-lhe um crónico rubor de faces. Então é vê-la, quando entra de manhã no escritório e repara no assomo da cabeça da coordenadora encriptada na sua guarita como um macaco, como se lhe afogueiam as faces como se recebesse uma injecção de sangue. Então, durante aproximadamente duas horas ninguém lhe ouve o pio, excepto quando o telefone toca:
- Estou sim? Sim, sim. O meu nome? Clamídia? Não, não é Clamínia, é CLA-MÍ-DI-A. Sim, com o M.
Este tipo de confusões, que muito a afligem, são também mais frequentes do que seria desejável. Chamaram-lhe já “Clotilde”, “Glamínia”, “Carminha” e outros barbarismos. Quando alguém mais arguto lhe pergunta o que quer dizer o seu nome, responde prontamente que é o nome de uma senhora austro-húngara. Foi este o primeiro resultado do Google, quando certa vez foi confrontada pela pergunta. Questionou os seus pais da razão de tão estranho nome, não tendo obtido qualquer resposta satisfatória. A sua mãe limitou-se a responder que não sabia, que tinha sido o pai a escolher. Certo malandrou disse-lhe um dia que era o nome de uma doença do amor, vulgo venérea, e que todas as doenças venéreas têm nomes femininos. E porque será? Clamídia amuou e ficou sem lhe falar precisamente durante uma semana inteira.
Tudo isto para chegar ao ponto a que havíamos chegado anteriormente, isto é, que o sossego anda por  um preço do caraças. E as razões pelas quais Clamídia se sente mal consigo própria e com o mundo são de ordem humana.
Mas caramba, parte-se-nos o coração e torna-se insuportável contemplar a sua disforme maça corporal servil, coberta pela roupa mil vezes remendada, o casaco de malha de um roxo esbatido já merecedor de condecorações e detentor de vida própria. Este ocupa orgulhosamente o lugar da sua portadora, pendurado na cadeira nas semanas de férias, assinalando simbolicamente a omnipresença da dona no posto de trabalho.
Por tudo isto chegámos a este pregão em uníssono: por favor, deixem as pessoas em paz. Parem de chatear. Acabem com o ritmo vertiginoso do mundo. Acabem com a velocidade frenética dos dias e devolvam a paz aos espíritos.
Tenho dito.

Ass: Porfírio da Silva, administrativo de terceira.