Um dos episódios
mais marcantes do eterno romance de Miguel de Cervantes é aquele em que o
valeroso fidalgo se defronta, por obra dos encantamentos (tão reais) que os
invejosos mágicos da sua ventura lhe colocam no caminho, com o enigmático
Cavaleiro dos Espelhos. Nos trilhos do encanto e do desencanto, esta personagem
dirige-se a Quixote com a mesma linguagem, a do ofício da cavalaria andante,
desafiando-o para um duelo, que o herói da história vence.
Na realidade (e
que realidade será esta?), o Cavaleiro dos Espelhos nada tinha de enigmático.
Tratava-se do seu quase vizinho - o Bacharel Sansão Carrasco -, que promete pôr
cobro às “loucuras” de D. Quejada e fazê-lo regressar são e salvo a casa.
Não consta que
Cervantes fosse senhor da palavra mimesis
com toda a carga filosófica que esta tem na cultura ocidental, mas conhecia
certamente o seu parente popular: a imitação. O Ser-Humano imita e imita-se na
representação que faz de si e do mundo, pelo que suspeitamos que Sansão
Carrasco se lançou ao caminho, menos para resgatar o nosso fidalgo do que por
afã de realização própria. Estaria o Bacharel Carrasco sob influência da mesma
lúcida loucura que os romances de cavalaria inspiraram em Quixote? Basta
lembrar que a segunda parte da obra, da autoria de mesmo autor da primeira,
saiu ensombrada (e graças) a uma segunda parte apócrifa, escrita por um tal de
D. Alonso Fernández de Avellena, que resolveu sequenciar as aventuras do último
reduto da cavalaria andante. Para não correr o risco de ser novamente plagiado,
Cervantes “mata” Quixote nesta segunda parte. Na verdade, numa época em que a
ideia de escrever para um grande público era ainda relativamente estranha, talvez
a sequela do Quixote mais não fosse que uma longa carta de rancor a Avellena.
A história do
Cavaleiro dos Espelhos, do Quixote apócrifo e do verdadeiro Quixote veio-me à
memória com este filme, porque tal como o romance de Cervantes (no que todos
temos de D. Quixote e de Sancho Pança), este filme é um espelho dos nossos
actuais descontentamentos, que não são só actuais nem apenas nossos.
O que se espera de um filme sério sobre
a China do século XXI? Que retrate a terrível condição existencial desse país
imenso apanhado no joelho da história, onde se conjuga o pior de dois sistemas político-económicos?
Sim, essa China está lá, mas (assustem-se), o país que se retrata na tela é o
país onde todos vivemos. Claro que existem especificidades nacionais em todas
as culturas sujeitas ao turbilhão de mudanças que as últimas décadas trouxeram,
mas como será que o novo convive com
o velho? Elimina-o? Substitui-o? A
mestria deste filme mostra como o pior dos tempos modernos convive com os
fantasmas tracionais. Diz no filme: «- Não
é tempo de rezar aos Deuses»; «- Sim, mas eu rezo a fantasmas». Qual será
a linha de montagem que não sonha com um exército de confucionistas conformados
ao seu serviço? Diz-se ainda: «- A culpa
é dos Deuses». O que farão então os homens?
A China que Zhangke retrata é violenta,
mas a violência gráfica que aí jorra em banhos de sangue é também uma hipérbole
e um simulacro da realidade, porque ao exagerá-la a diminui e desacredita. Por
isso cria a necessária distância da realidade, sem a qual é impossível
compreendê-la.
As quatro histórias que nos retrata o filme
são as de quatro personagens em constante movimento e no limiar de algo
catastrófico. Saltam de região em região como estrangeiros no próprio país;
agridem, falsificam, matam, matam-se. A realidade é para eles um muro
intransponível num mundo onde não podem existir pessoas ou, a quem quer
existir, resta o suicídio pessoal e social, porque essa é a condenação de quem
atravessa a barreira libertadora e fatal da transgressão. Mas esse suicídio
pessoal é também uma morte colectiva, a que leva um certo caminho da
“prosperidade”, simbolicamente representado em edifícios homogéneos carregados
de estendais. Esse é o caminho da anulação da subjectividade, porque quando se
parte o espelho e se mata D. Quixote, deixa de existir o Ser-Humano.