sábado, 29 de dezembro de 2012

O Argumentário da Vida


         Diz-se que na China o número de suicídios é assombroso. Não só se diz como o comprovam aquelas coisas fantásticas a que hoje chamamos estatísticas.
Na Ponte de Nanquim, são muitos os que acabam os seus dias com a belíssima paisagem como pano de fundo. As razões são conhecidas de todos, para além de factores culturais, os efeitos sociais devastadores do capitalismo
Numa ocasião de estadia em Paris, assisti a uma cena cliché bem típica da Cidade Luz: uma rapariga bela, loira, fumava o seu (último?) cigarro sentada border line, numa ponte histórica sobre o Sena. Neste caso parisiense, qualquer rapazote bem-apessoado da capital, de tez clara e blazer cinza, resgataria a suicida às garras esfomeadas da morte. Possivelmente, a moça deslocar-se-ia imediatamente a Saint Sulpice e confessar-se-ia na famosa Igreja do Código Da Vinci. De seguida, iniciaria um romance com o seu salvador
No caso chinês, perante circunstâncias bem mais prosaicas, desde 2004 que um herói de 39 anos dedica os seus fins-de-semana a salvar os desesperados. É reconfortante que no mundo existam heróis desta cepa, ainda que indisponíveis durante a semana.
Se o Governo Chinês se interessasse pelo caso e desejasse criar postos de trabalho e ainda, para não se chatear com burocracias laborais, entregasse o recrutamento de salva-vidas profissionais a uma qualquer outsourcer, estou certo que os candidatos teriam uma formação intensiva como os artistas do marketingue, ficando senhores de num argumentário que revigore a força de viver. Por comodidade, chamemos-lhe o argumentário da vida.

       Um trabalho delicado, este. Quais seriam esses argumentos? Como convencer um pai de família a não se suicidar, quando este é o único meio de prover à subsistência da sua família, uma vez que a sua morte implica o perdão das dívidas? Como convencer um jovem educado na competitividade animal das universidades, de que a sua vida não acabou apenas porque não conseguiu ainda arranjar trabalho, um cabriolet novo e uma noiva bonita com traços ocidentais? Como convenceriam esses funcionários alguém a não cometer suicídio, quando esse alguém representa mais despesa que receita e, portanto, na linha do discurso oficial, carrega o fardo de uma vida ineficiente? Tarefa difícil.

     Porém, estou seguro de que os esforços destes senhores não seriam em vão. O nosso voluntário de 39 anos já conseguiu salvar umas 130 vidas desde 2004. Parece-me, assim, que os tais funcionários, se fossem pagos à peça como os agentes da Emel, veriam as suas diligências compensadas, apesar das eventuais desilusões.  

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

6, de Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes

Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.




Alexandre O'Neill,
in "Poesias Completas 1951/1986"

domingo, 16 de dezembro de 2012

Bem-vindo sejas
à terra dos relógios
e da troca
não te preocupes
com o que tens
a fazer aqui
nós tratamos de tudo
e se te portares bem
receberás umas migalhas
bem-vindo sejas, pois,
à máquina
na infância poderás brincar 
mas depois a escola
tomará conta de ti
encaminhar-te-á
para o mercado
trabalharás
com o suor do teu rosto
assentarás
casarás
terás filhos
poderás sonhar às vezes
verás relevisão
até que chegas a velho
sem desejo
sem volúpia
eis a tua vida
bem-vindo sejas
à terra dos relógios
e da troca.

António Pedro Ribeiro

sábado, 8 de dezembro de 2012

A Crónica do Mundo

Por várias vezes a vi,
À saída do centro da cidade,
Ao dobrar da primeira esquina,
O avassalador monte de luzes dos arredores,

E há blocos de cimento
E gavetas e gente lá dentro,

Vi, na noite, o rio que divide
A cidade, como um espaço de nada,
Ao outro lado, as luzes dos arredores
Parecem um rio de fogo suspenso.

Luzem as luzes,
Enquanto não rebentar o grande Peido,

Às vezes apagam-se, e
Olhámos o rio, vazio, assim,
Sem as luzes da cidade dosa arredores ao alto,
E o espaço é um grande nada.

Será que vivem?