sexta-feira, 12 de junho de 2015

O meu Trisavô

Já ninguém se lembra quem foi o meu trisavô. É certo que tive bastantes, como toda a gente, mesmo os bastardos e órfãos. Todos tiveram um trisavô.

Podia ter sido o Eça de Queirós ou o Lenine e nesse caso todos os membros da família carregariam orgulhosamente o emblema ao peito. Mas não. No entanto, ele existiu. Nasceu numa pequena aldeia do norte de Portugal em 1872. Oh, quantas coisas importantes e decisivas não aconteceram nessa data. Não me consta que ele tenha participado em alguma. Passou a infância e a juventude e casou na freguesia onde nasceu, trabalhando a terra e criando numerosa prole, como era costume da época.

Apenas uma data: 1929. Em 1929, no inverno, sabemos que pediu autorização às autoridades competentes para viajar para o Brasil. Do passaporte que lhe foi emitido consta a única fotografia que dele temos. Nela vemos um homem com 57 anos que está prestes a atravessar o atlântico num moderno navio a vapor. Esta é, quiçá, a primeira viagem que faz na sua vida.

 Apesar da pouca qualidade da foto, vemos os cabelos brancos que despontam abundantes na sua cabeça. Com uma idade que, à época, era já para fazer as continhas do caixão, o meu trisavô desconhecido prepara-se para viajar para terra incógnita e enfrentar a tormentosa e tropical urbe do Rio de Janeiro, ou perder-se nas imensas planuras do sertão brasileiro.

Em 1929… Quantas coisas importantes já não aconteceram entre 1872 e 1929… O rei D. Carlos sucedeu no trono ao seu pai – D. Luís, e após uns quantos arremedos de indolência real comprovados pelos séculos, acaba assassinado em plena baixa lisboeta, em 1908. A Monarquia está por um fio e ninguém parece disposto a morrer por ela, excepto meia dúzia de jovens integralistas cheios de testosterona e um tal de Paiva Couceiro. O futuro D. Manuel preferirá acabar os seus dias em sossego no exílio dourado inglês a envolver-se em aventureirismos. Muitos não lhe perdoam a covardia.

Em 1929, a Rússia é já uma federação popular de repúblicas desde 1917, data em que Rasputine abandona o mundo de vez. A Guerra Civil entre brancos e vermelhos já acabou há 7 anos e Trotski deu de frosques para o México, fugido à tirania de Estaline.

Os grandes homens do século XIX são já quase todos apenas memória, em 1929, e o mundo burguês vitoriano atolou-se e morreu na lama das trincheiras da primeira guerra mundial.

O sonho de uma paz duradoura que tinha sido inaugurado com a Sociedade das Nações encontra-se perigado pela emergência de movimentos fascistas. A crise de 1929 dá o golpe de misericórdia ao multilateralismo, e cada Estado volta os olhos para o seu umbigo.

Entretanto, o meu trisavô faz também pela vida, procura sobreviver. Sabemos que voltou a Portugal, mas ignoramos quando. Viveria ainda o tempo suficiente para assistir a uma Segunda Grande Guerra e à ascensão ao poder do jovem contabilista de Santa Comba Dão. Fernando Pessoa, bastante mais novo, faleceu já em 1935, de cirrose.

Daí até aos anos 50 foi apenas num salto. Começa a Guerra Fria, mas quem não tem televisão e mal conhece o cinema não dá muito por isso. No Portugal sem pós- guerra desses anos, as batalhas são ainda pela sobrevivência e a fome é ainda uma ameaça real. A tuberculose leva tantos como teria levado a guerra civil no país vizinho.

O meu trisavô acaba os seus dias num lar, em 1960, um ano antes da Guerra do Ultramar. Foi a enterrar num cemitério que não era o da sua terra natal e em vala comum, ao que parece. E no entanto, quando o olho nos olhos da fotografia que dele resta e reparo como fita corajosamente a objectiva com um orgulhoso bigode oitocentista, o passado que já não existe apresenta-se-me vivo e deformado pela imaginação para cair novamente no esquecimento.  


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

China - Um Toque de Pecado, de Jia Zhangke (2013). O país onde vivemos.




Um dos episódios mais marcantes do eterno romance de Miguel de Cervantes é aquele em que o valeroso fidalgo se defronta, por obra dos encantamentos (tão reais) que os invejosos mágicos da sua ventura lhe colocam no caminho, com o enigmático Cavaleiro dos Espelhos. Nos trilhos do encanto e do desencanto, esta personagem dirige-se a Quixote com a mesma linguagem, a do ofício da cavalaria andante, desafiando-o para um duelo, que o herói da história vence.

Na realidade (e que realidade será esta?), o Cavaleiro dos Espelhos nada tinha de enigmático. Tratava-se do seu quase vizinho - o Bacharel Sansão Carrasco -, que promete pôr cobro às “loucuras” de D. Quejada e fazê-lo regressar são e salvo a casa.

Não consta que Cervantes fosse senhor da palavra mimesis com toda a carga filosófica que esta tem na cultura ocidental, mas conhecia certamente o seu parente popular: a imitação. O Ser-Humano imita e imita-se na representação que faz de si e do mundo, pelo que suspeitamos que Sansão Carrasco se lançou ao caminho, menos para resgatar o nosso fidalgo do que por afã de realização própria. Estaria o Bacharel Carrasco sob influência da mesma lúcida loucura que os romances de cavalaria inspiraram em Quixote? Basta lembrar que a segunda parte da obra, da autoria de mesmo autor da primeira, saiu ensombrada (e graças) a uma segunda parte apócrifa, escrita por um tal de D. Alonso Fernández de Avellena, que resolveu sequenciar as aventuras do último reduto da cavalaria andante. Para não correr o risco de ser novamente plagiado, Cervantes “mata” Quixote nesta segunda parte. Na verdade, numa época em que a ideia de escrever para um grande público era ainda relativamente estranha, talvez a sequela do Quixote mais não fosse que uma longa carta de rancor a Avellena.

A história do Cavaleiro dos Espelhos, do Quixote apócrifo e do verdadeiro Quixote veio-me à memória com este filme, porque tal como o romance de Cervantes (no que todos temos de D. Quixote e de Sancho Pança), este filme é um espelho dos nossos actuais descontentamentos, que não são só actuais nem apenas nossos.

O que se espera de um filme sério sobre a China do século XXI? Que retrate a terrível condição existencial desse país imenso apanhado no joelho da história, onde se conjuga o pior de dois sistemas político-económicos? Sim, essa China está lá, mas (assustem-se), o país que se retrata na tela é o país onde todos vivemos. Claro que existem especificidades nacionais em todas as culturas sujeitas ao turbilhão de mudanças que as últimas décadas trouxeram, mas como será que o novo convive com o velho? Elimina-o? Substitui-o? A mestria deste filme mostra como o pior dos tempos modernos convive com os fantasmas tracionais. Diz no filme: «- Não é tempo de rezar aos Deuses»; «- Sim, mas eu rezo a fantasmas». Qual será a linha de montagem que não sonha com um exército de confucionistas conformados ao seu serviço? Diz-se ainda: «- A culpa é dos Deuses». O que farão então os homens?

A China que Zhangke retrata é violenta, mas a violência gráfica que aí jorra em banhos de sangue é também uma hipérbole e um simulacro da realidade, porque ao exagerá-la a diminui e desacredita. Por isso cria a necessária distância da realidade, sem a qual é impossível compreendê-la.

As quatro histórias que nos retrata o filme são as de quatro personagens em constante movimento e no limiar de algo catastrófico. Saltam de região em região como estrangeiros no próprio país; agridem, falsificam, matam, matam-se. A realidade é para eles um muro intransponível num mundo onde não podem existir pessoas ou, a quem quer existir, resta o suicídio pessoal e social, porque essa é a condenação de quem atravessa a barreira libertadora e fatal da transgressão. Mas esse suicídio pessoal é também uma morte colectiva, a que leva um certo caminho da “prosperidade”, simbolicamente representado em edifícios homogéneos carregados de estendais. Esse é o caminho da anulação da subjectividade, porque quando se parte o espelho e se mata D. Quixote, deixa de existir o Ser-Humano. 

domingo, 10 de novembro de 2013

Livros a ler. 3- D. Quixote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes. Os caminhos do encanto e do desencanto.



O que dizer sobre uma obra da qual tudo já foi dito e escrito? Deu origem a incontáveis teatralizações, que ainda hoje pululam nos palcos de todo o mundo. Inspirou e obteve de séculos de tradição literária um sem número de glosas. Aquela que parece apenas uma obra satírica dos romances de cavalaria da época (os best-sellers) e todo o seu cortejo de sandices e tramas inverosímeis, é um tributo à condição humana. A loucura de D. Quixote não o é num sentido patológico, nem a simplicidade de Pança (tornado cada vez mais sábio à medida que o enredo avança) um estereótipo do povo ignorante, ávido da fartura e da riqueza fácil. As viagens de Quixote são um grito desesperado e anacrónico de um mundo mágico que desaparece; e se à extinção do mundo mágico da cavalaria lhe sucede o prosaísmo da realidade, ainda que aprendido à força da pancada, não deixa a sua Triste Figura (representada por Lima de Freitas na edição da Relógio D´Água quase como uma linha ténue e difícil de decifrar) de transparecer o desencanto de todas as coisas, e a magreza dos seus membros o encanto da decadência no turbilhão da mudança.
Como, melhor que ninguém, disse António Gedeão:

“Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.

Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.”

Ambos são necessários, portanto, o encanto e o desencanto.

domingo, 6 de outubro de 2013

Livros a ler. 2- The Fontainhead (1943), por Ayn Rand



Howard Roark é um talentoso estudante de arquitectura expulso da universidade no terceiro ano do curso, dadas as suas divergências estéticas com os professores.

As razões desta divergência são tudo menos ocultas. A escola segue a linha geral e universalmente aceite como boa –o classismo. Os desenhos e projectos encontram-se impregnados de pórticos, colunas coríntias, modelos do Erecteión... - as únicas construções, segundo modelos cientificamente provados, concebidas para agradar ao público e conferir dignidade às instituições que albergam.
Roark rejeita esta visão da sua profissão e acredita que, para além de todas as aparências e convenções, a concepção de uma casa deve-se assemelhar à de um corpo humano; cada minúsculo tendão ou osso tem uma função, assim numa casa tudo deve fazer sentido, como se o edifício fosse uma emanação natural do local onde é erigido: “Nothing is reasonable or beautiful unless its made by one central idea, and the idea sets every detail “. As linhas que Roark desenha seguem este instinto e nesta verdade encontram apoio na figura de H. Cameroon, um velho arquitecto caído em desgraça pelo ascendente do classicismo e seus sequazes.

Mesmo o leitor analfabeto em arquitectura (ou principalmente este) compreende que o Romance de Ayn Rand não é sobre arquitectura, mas sobre um estado de coisas mais vasto onde se jogam a integridade, as convicções, a vida. A negação da vida, o seu oposto, parece ser algo tão difuso como a existência de uma cidade, e tão concreto como o próximo homem a cruzar a rua. No seu leito da morte, Cameroon, contempla as fotos do novo atelier de Roark e  sussurra-lhe:
It doesn’t  say much. Only “Howard Roark, Architect”. But it’ s like those mottoes men carves over the entrance of a castle and died for. Its a challeging in the face of something so vast and so dark, that all the pain  on earth - and do you know how much suffering  there is on earth? – all the pain comes from that thing you are going to face – all the pain comes from that thing you are going to face, I dont know what it is, I dont know why it should be unleashed against you. I know only that it will be. And I know that if you carry thoso words through the end, it will be a vicotory, Howard, not just for you, but for something that should win, that moves the world – and never wins acknowlegement”

A realidade que Roark viria a enfrentar não se afastou daquilo que Cameroon previra. Foram-lhe franqueadas as portas em todos os ateliers da cidade, conseguindo apenas trabalhar de forma esporádica em projectos tão excêntricos como a personalidade de Roark sugere.

The Fontainhead surge-nos como uma apologia do indivíduo e da capacidade que este tem para romper as contingências que a realidade lhe impõe. E tudo correria bem, se Rand se detivesse por aqui. Mas quando, de forma maniqueísta, vê em todos os ímpetos colectivistas (ou algo que cheire a isso), um Leviatã maldoso que apenas existe para impedir os espíritos nobres, íntegros e produtivos de se concretizar, Rand parece trair o sentido que a sua obra, a determinada altura, parece tomar. Se a vontade e o espírito não devem repousar em nenhum sistema, político ou estético, que não tenha como princípio a verdade ou que não seja uma autolegitimação, porque não poderia passar a ser sistema aquilo a que o seu romance tão devotamente aspira; as construções desornamentadas e despidas de todo o rococó, o plástico cujas múltiplas potencialidades Roark adivinha; podem ser a emanação de uma ideia central ou tão só uma forma barata e descartável de construir. A mediocridade que se assume como tal, sem qualquer ornamento. A projecção do individuo para além do bem e do mal (um laivo nietzschiano repudiado pela autora mas que tresanda ao longo de toda a sua obra) não se quer levada à loucura (e não consta que tal tenha acontecido sem um rol ignominioso de crimes), mas apenas enquanto capacidade humana de determinar as determinantes. De nada vale a rejeição do fascismo e do comunismo que a autora acusa como sendo formas perversas de religião para admitir como único sistema onde o individuo se pode realizar… o Capitalismo laissez faire; e apenas porque o homem ideal necessita de interagir com outros homens.  Rand arrasta o seu Roark (também ele asséptico e profissionalíssimo) para uma forma mais perversa de religião, onde nenhuma redenção é possível. Quando julgamos que estamos perante uma forma superior de estar fora do tempo e do espaço, toda a obra nos surge atraída para um único centro gravitacional: a profissão, a competência profissional. O homem que cumpre a sua forma de estar no mundo é o profissional - “the man who loves his job”, e a incompetência o único pecado que merece ser punido com as chamas do inferno. Como alguém já disse, isto não é um humanismo, mas uma forma vulgar de protestantismo ou uma certa forma americana de ser religioso.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

 A C. Bukowski


Não precisas dizer, Charles,
Bem sabemos que não vale a pena tentar,
Não precisas de contar histórias extraordinárias,
Seres sobre e sub-humanos,
As grandes façanhas, o holocausto,

O homem é monstruoso que chegue na sua dimensão,

Sabes, são duras,
Não as grandes dores, a morte dos pais, a morte de um filho,
Uma doença, mas as pequenas,
As de todos os dias,
O taxista e o empregado de mesa –
Seres de suprema perspicácia -  
Adivinham que és um zé
 Ou então um discurso - e todos aplaudem e gostam
E só tu ouves merda e queres gritar…

É duro, Hank,

A luz do frigorífico de todos os dias,
Os lamentos das donas de casa no metro,
As sopeiras na paragem de autocarro,
As adolescentes com bebés ao colo,
E escrevias um poema magnífico – como são os teus-
E saías à rua, não com a esperada bebedeira,
Mas lúcido como um alho – e o rapaz de fraque à porta -  
Vira a cara ao lado quando passas;

Esses olhares, Hank…

As pessoas não são parvas. Todos olham pela tua vida
Como se fossem Deuses-Todo-Poderosos;

A rapariga enfezada e desdenhosa , lembraste?
Percebe mais de fisionomias do que um frenologista.
Agora até as ameaças, não é, valentão?
Sabes bem porque é que elas não voltavam, não sabes?
Aquelas palavras meias ditas, aqueles gestos,
Bem sabes,...

Por isso desconfiavas, e com razão,

É um mistério, sabes…



segunda-feira, 9 de setembro de 2013



Éramos muitos,


Não sei quantos, mas muitos,


E Deus criou a palavra, e por ela nos votou à imperfeição,


Davam-nos papel higiénico para limpar a cavidade oral,


E Deus criou o corpo e as montanhas,
E em ambos colocou abismos insondáveis,


Éramos muitos e fortes, e eles poucos e fracos,


E para que conservássemos a vida
Deus criou o medo


Éramos muitos,
No entanto os nossos braços fortes pendiam
Como galhos despidos aos primeiros sopros do vento de Outono.


(…)
Não nos preocupemos, amigos, em colecionar as falhas dos ricos,
Eles são gente poupada – e paciente – certeza é que
Aguardam o momento certo para nos lançar a funda dos nossos pecados à cara.